Durante o mês de junho e julho passado, o Salão da Sociedade Nacional de Belas Artes albergou a exposição “Vinte e Três”, uma das exposições mais interessantes realizadas por ocasião do projeto da Capital da Cultura Iberoamericana, que nesta ocasião teve lugar na cidade de Lisboa, Portugal.
Uma rede de linhas paralelas, etéreas, cruzavam a espartana sala e propunham ao visitante descobrir por si as conexões e desconexões entre artistas de 23 países iberoamericanos, o número de países que compõem a União das Cidades Capitais Iberoamericanas (UCCI).
Entre os vários projetos culturais e exposições realizados no âmbito da UCCI desde a sua criação em 2004, a Associação Portuguesa de Joalharia Contemporânea, ou PIN, como é conhecida neste campo, propôs pela primeira vez a joalharia contemporânea como veículo para explorar o amplo tema “Passado e Presente” que guiou a Capital Iberoamericana da Cultura Lisboa 2017.
O termo “Joalharia Contemporânea” é um dos muitos termos usados para descrever um tipo particular de prática artística onde a jóia deixa de ser um item simbólico/ornamental, para adquirir propriedades que a convertem num veículo único que os autores utilizam como forma de representar os fenómenos culturais, posições pessoais e as vertiginosas mudanças sociais da nossa época.
O projeto curatorial, a cargo da PIN (Madalena Braz Teixeira, Cristina Filipe, Carlos Silva, Raquel Soares e Joana Taurino), patrocinado por uma comissão consultora multinacional, realizou uma seleção ambiciosa baseada num critério de disparidades e afinidades. Em conjunto com o fascinante design expositivo de Fernando Brizio, “Vinte e Três” propôs refletir sobre a questão da identidade – pessoal, nacional – num mundo globalizado como nunca antes e que vê os artistas de hoje moverem-se de um lado para o outro, de maneira real ou virtual e em questão de horas ou segundos. A pesquisa primária foi: Numa era em que um artista nasce num ponto e produz noutro, se alimenta da informação que flui através da internet a partir de todos os pontos do planeta ou tem acesso a materiais provenientes dos cantos mais escondidos da terra; pode continuar-se a falar de arte nacional – português ou espanhol, colombiano ou nicaraguense-; podemos determinar a origem de um objeto olhando só para ele? Faz sentido fazer isso?
Para discutir esta questão, procurou-se a participação de artistas joalheiros dos 23 países envolvidos. No entanto, logo se tornou evidente que uma disciplina tão pequena como complexa não possui ainda representantes em todos estes 23 países. Por isso o tecido desta história que a PIN tentava colocar, parecia ter buracos em todos os lados. Em vez de ser um obstáculo, estes vazios tornaram-se em mais um elemento: a Ausência. Um ponto de suspensão sobre o qual os organizadores, curadores, consultores e público poderiam pensar tanto como aqueles pontos prolíficos da Iberoamerica contemporânea. Estas Ausências transformaram-se, dentro de “Vinte e Três”, em pontos de possibilidade, de desejo, de expectativa.
Desta forma, o designer Fernando Brízio aproveitou este tecido esburacado da cena da joalharia contemporânea Iberoamericana para criar um oceano de linhas de acetato, meridianos metafóricos, que faziam flutuar estreitas caixas de acrílico ao longo do comprimento da sala. Algumas peças foram colocadas dentro das caixas, outras fora delas; outras caixas ainda estavam vazias.
Não contentes com a beleza poderosa e etérea desta montagem, a Comissão Executiva da PIN deu-se ao trabalho de criar um desafio para o público; convertendo esta mostra não só em um ambiente de prazer e de aprendizagem, mas também em um espaço lúdico onde o público era desafiado a descobrir quem era quem dentro deste jogo de geografias inexploradas. Qual é o local de partida deste ou daquele grupo de artistas suspenso num meridiano? O que acontece hoje nestes países que só nos são familiares no nome? De que maneira se relacionam com a nossa quotidianeidade? Quais os países que estão representados pela ausência? Pode um objeto tão pequeno como uma jóia falar de identidade? De que maneira estes objetos estranhos conseguem relacionar-se com o nosso corpo?
O broche “Little Places I”, da artista equatoriana Anabel Bravo, é uma velha caixinha de lata que contém uma maquete em miniatura representando uma cena num parque. Com esta peça, Bravo procura congelar momentos quotidianos, mas importantes para o artista, à maneira de uma fotografia tridimensional. O parque poderia estar em qualquer lugar: Guayaquil ou Valência, ambos lares da artista. Enquanto que “Relicário”, do também equatoriano Hugo Celi, é outra caixa de madeira que contém as falanges distal e medial de um osso humano. A peça entra em agudo contraste com a peça de Bravo, vendo a morte como um estado irremediável e permanente.
A série íntima e quase arquitectónica da espanhola Estela Saez Villanova, intitulada “Nothing in Between” (ou “Nada no Meio”), elaborada em prata, ouro e fluorita, relata a solidão da artista nómada; o momento em que descobre a fragilidade de sua existência; e o princípio e o final de cada etapa da sua vida ou cada estadia num país em que viveu.
Xavier Monclus, nascido e residente em Barcelona, Espanha, apresentou uma série de broches intitulados “Arquitetura Silenciosa”. Uma igreja; uma estilizada construção menorquina; uma gaiola coelheira. Construções que comunicam segurança e proteção, tristeza e decadência, identidade e anonimato.
Ignasi Cavallier, nascido em Menorca, Espanha, e radicado no Cairo, Egipto, emprega crípticos títulos como “Um Porco Não Come Doces” ou “Desabafando” para as peças de barrocos plásticos reciclados que parecem fundir objetos futuristas banhados numa subtil patina árabe.
A mexicana, formada no Royal College of Art em Londres, Sandra Alonso, apresentou “Inter-Acting”, uma série de 14 peças de aço e latão (possíveis braceletes ou objetos de mão) que, acompanhadas de um vídeo, narram a forma em que as relações humanas mudam em resposta ao seu entorno e a maneira como o processo de adaptação a lugares alheios ocorre. Com esta série, Alonso cria uma ferramenta que pretende lubrificar a transição entre ambos os lugares.
Ximena Briceño nasceu no Peru e viveu na Austrália durante mais de uma década; o tempo que levou a desenvolver uma extensa investigação sobre a filigrana peruana. Briceño observa a filigrana como uma forma de expressão nacional e no seu atelier aplica-a para tornar maleáveis materiais não utilizados tradicionalmente no fabrico de filigranas, como o titânio ou o monel (uma junção de níquel, cobre, ferro, carvão e silicone). O resultado: “Fauna Híbrida para o Século XXI”, uma série de ornamentos corporais e objetos inspirados nos incensos coloniais que exploram o desenvolvimento de identidades híbridas, consequência da experiência migratória.
O Chile, como um dos países mais fortes no campo da joalharia contemporânea na América Latina, teve uma extensa presença em “Vinte e Três”. Com uma enorme variedade de trabalhos que vão desde as estilizadas peças de Rita Soto, construídas com uma variedade de materiais e técnicas autóctones, como o pêlo de cavalo e a lã, até às azuladas formas abstratas em prata, cobre e esmalte de Carolina Gimeno, a joalharia chilena tem um denominador comum extremamente interessante: o uso consistente de materiais puramente locais e processos ancestrais para criar peças capazes de manter fortes diálogos através de qualquer fronteira; seja disciplinar ou geográfica.
Raquel Paiweonsky é uma artista visual nascida na República Dominicana e com uma ampla trajetória internacional. Embora ela não produza exatamente joalharia, o seu trabalho – maioritariamente fotografia, objetos e instalações – gira inevitavelmente em todo do corpo, em particular o corpo da mulher dominicana e sempre na sua relação com o pensamento mais abstrato e íntimo. O resultado desenrola-se de forma contundente, urgente e às vezes brutal. Paiewonsky apresentou uma série de fotografias que exploram a relação entre essência pessoal e entorno, o impacto que as construções culturais – no caso da República Dominicana, frequentemente importadas dos Estados Unidos – e os estereótipos geram em todos nós, tendo sempre como referência a parte mais primária da nossa natureza e como esta se vê afetada pela mudança vertiginosa dos contextos atuais.
Outro exemplo interessante é o do artista e joalheiro cubano Carlos Martiel. Martiel nasceu em Havana e estudou artes visuais e, posteriormente, um mestrado em joalharia na Academia San Alejandro. O artista usa o seu corpo como ponto de partida e fim, comprometendo a sua própria saúde física e mental, para lidar com questões diretamente relacionadas com a sua situação como cubano: a migração forçada, a ferida e a cura como parte do processo histórico colonial ou o imaginário popular cubano, em relação ao nosso universo em movimento. Depois de ter estado confinado em Cuba durante anos, ironicamente Martiel conseguiu fugir da Ilha, para converter-se numa figura internacional da arte. Ele atualmente reside entre Havana e Nova York.
A participação de Portugal e do Brasil, as únicas nações irmanadas pela mesma idioma, também foi vasta e rica. Em 2008, Cristina Filipe, diretora da PIN, e a artista brasileira Lucia Abdenur, já tinham realizado um projeto curatorial colaborativo: “Jóias Reais – Joalharia Contemporânea Luso-Brasileira”, apresentado no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro e no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa, que abordava as relações históricas entre o Brasil e Portugal desde a chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil no ano de 1808. No campo da joalharia contemporânea, os esforços de Cristina Filipe e da PIN para manter intercâmbios com os seus colegas brasileiros foi sempre exemplar.
Teresa Dantas, nascida em Moçambique e que estudou e vive no Porto, Portugal, há décadas, incorpora técnicas de restauro na produção das suas jóias. Elabora contracturas incomuns numa busca de sentido para a infinidade dos milhares de objetos que foi colecionando ao longo dos anos e, dessa forma, consegue converter em matrizes de linguagem fragmentadas e conscientemente desordenadas. Apesar disto, as formas de Dantas são sempre críticas das realidades atuais e impregnadas de um subtil humor.
A arquiteta e joalheira brasileira Kika Rufino, que realizou um mestrado em gemologia em Idar Oberstein, na Alemanha, apresentou um colar pertencente à série “Memórias”. Encontrando-se longe, procurar e examinar os vários objetos da sua caixa de memórias era uma maneira de encontrar-se de novo em casa. Estes objetos de valor exclusivamente pessoal detonaram a série elaborada em cobre, papel, cera, chá e molho de soja. Através desta série a artista evoca o seu tempo no Brasil, frágil e etéreo como o papel e a cera e consegue, através do cobre condutor, liga-lo ao seu presente na Alemanha.
Essas peças conviveram com dezenas mais, numa sinfonia aparentemente desconexa, mas comovedoramente familiar, pelo espaço de um mês; formando uma cartografia artística social, ao envolver o público, sem este se aperceber, na tarefa de buscar identidades. A película flutuante de acetatos que albergou estes objetos e evidenciou os vazios – Nicarágua, Guatemala, El Salvador, Honduras; países mais castigados pela era pós-colonial e que ainda aparecem invisíveis aos olhos de muitas disciplinas artísticas – representou um desafio, um enigma para os visitantes que deviam encontrar a nação de cada um dos espaços demarcados. Os participantes recebiam pequenas bandeiras autocolantes que deviam colocar numa matriz, seguindo as suas intuições.
4442 bandeiras dos países representados foram colocadas pelos visitantes da mostra em 23 matrizes correspondentes também a cada país. O público devia adivinhar que meridiano correspondia a cada país. No final da mostra, este conjunto de bandeiras constituía um panorama quase pixelizado, representativo das percepções do público sobre a Iberoamerica e sobre as peças da mostra. A maioria dos palpites não foi acertada.
Olhar, sentir, pensar e depois adivinhar. É possível? É necessário?
O debate sobre a importância da identidade na arte é velho e interminável. Ninguém consegue pôr-se de acordo; Nesta época de mobilização vertiginosa e multidimensional, a discussão adquire novos matizes. Pessoalmente, penso que a determinação de uma identidade nacional é uma faca de dois gumes: um que cria guerras, preconceitos e estereótipos; mas, ao mesmo tempo, nos impele a continuar a apreciar a diversidade geográfica, racial, cultural do nosso mundo. Ajuda-nos a ter um sentimento de pertença numa época em que às vezes se torna difícil saber onde estamos, pensar para onde vamos ou recordar de donde viemos.
As jóias exibidas em “Vinte e Três” evocaram os traços e as rotas do passado e as conexões culturais que compartem estes países que, unidos antes pelas correntes da Colónia, agora partilham e se enriquecem mutuamente com línguas, ideias, tradições. Também informaram o público sobre como estas peças incomuns podem encontrar abrigo nos seus próprios corpos. Esta paisagem sublime deu origem a uma dialética tripartida. Empregando a bela citação da diretora da PIN, Cristina Filipe: “Entre a grandeza do espaço expositivo, a respiração da paisagem inerente e a minúcia de cada cultura, o corpo encontra o seu lugar”.
Mais uma vez a PIN demonstra a sua capacidade única de impulsionar projetos extraordinários, virtualmente com “alfinetes”. Como em todos os países da região cultural conhecida como Iberoamerica, a PIN enfrenta as carências, a falta de apoios e subsídios, as burocracias e inumeráveis obstáculos para sair vitoriosa e apresentar um panorama tão acertado como fascinante da joalharia contemporânea na Iberoamerica. Resta apenas esperar que esta mostra possa ser apresentada noutros meridianos.
http://www.artecapital.net/arq_des-144-valeria-vallarta-siemelink–vinte-e-tres-ausencias-%20%20e-aparicoes-numa-mostra-de-joalharia-iberoamericana-pela-pin-associacao-portuguesa-de-%20%20joalharia-contemporanea